terça-feira, 11 de maio de 2021

Lucid Dreams

    Acordei assustado mais uma noite, ou mais um dia, o tempo as vezes não é muito claro na minha cabeça, minhas paredes são pretas e a cortina está sempre fechada, sentia o suor escorrer da minha nuca e o cheiro de comida velha que emanava das caixas de pizza empilhadas em um canto qualquer do quarto. Levei as mãos no rosto como se aquilo pudesse conter a angústia que eu sentia, mais uma vez sonhos ruins me atormentavam, tão vívidos que podia sentir minhas entranhas se contorcendo. 

    Sempre começa casualmente, minha mente me coloca em algum lugar familiar, e eu me vejo impotente em meio a cena, as pessoas agem estranho, o desprezo por mim é nítido em cada rosto, por mais que eu tente agradar ou implorar afeto, as coisas escalam até que fico choroso e agressivo e então eu acordo mais uma vez, com um nó na alma e a sensação de não pertencer mais ao mundo, pelo menos não o meu. 

    Eu sempre consegui lidar bem com a dor, quando era criança eu descontava na comida, quando era adolescente demonstrava desprezo pelos outros, e em seguida passei a alargar as orelhas, pra que a dor física substituísse a psicológica e eu ainda pudesse tirar algo bom daquilo, em seguida conheci Bukowski, me afoguei em seus livros, maços de cigarro e garrafas de cerveja. Hoje não faço mais isso, nada disso, a dor acumulada em meu tempo de inércia parece agora escorrer leve e venenosa por todo o meu crânio e entranhar o meu cérebro, fazendo com que meus sonhos ruins e pensamentos mais sombrios arranhem as paredes da minha cabeça constantemente. 

    Quando era criança os pesadelos sempre se tratavam de monstros, fantasmas ou qualquer coisa do tipo, hoje já não me preocupo com isso, eles são piores, são sobre interação humana, amor, amizade, embora inofensivos no começo, como se algum pudesse tecer com grotescas mãos invisíveis o avesso dos seus melhores sonhos, onde tudo que é bom apodrece, e o que já não presta intoxica mais ainda. 

    Não há forma sensata que eu possa descrever cada um deles, até mesmo porque não fariam sentindo para a maioria das pessoas, é como quando um personagem do Lovecraft encara uma entidade cósmica tão horrível e subjetiva que a consciência humana não consegue entender direito do que se trata, apenas tremer em estado de choque e loucura. 

    Saio do meu devaneio, vou até o banheiro e lavo o rosto, coloco um som Shoegaze pra tocar e fico imerso em minha própria presença, penso no meu trabalho, na faculdade, nas pessoas que cruzam meu caminho, e esboço um sorriso amargo ao perceber que estar acordado não é tão diferente, do sonho ao menos posso acordar, sair de lá, mas e a vida? Pra escapar só existe uma saída, e embora tentadora, minha covardia tão enfatizada por meus atormentadores noturnos não permite que eu prossiga. Assim eu sigo, uma noite por vez, até que o tempo, implacável e infinito execute a tarefa em meu lugar.


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2021

As vezes sinto que estou morto

    Em um fim de semana qualquer eu fui beber. É sempre assim que começa, as vezes saindo só do quarto para a sala, outras para o outro lado da cidade, quando acontece a segunda opção o caminho é sempre agradável, sinto o vento no rosto e as árvores dançam entortando os galhos nas mais diversas posições, desço as mesmas ruas de sempre e sinto o odor de cada caminho, alguns tem cheiro de flores, outras de óleo diesel e estopa, mas a maioria é composta de rostos embriagados e cheiro de mijo, com o tempo você se acostuma, até mesmo passa a gostar. Assim que cheguei no bar de sempre, com a mesma fachada velha e dono rabugento avistei um aceno, vinha de uma mesa afastada, com diversos rostos conhecidos, antes que pudesse dar um passo fui acometido por um devaneio.

    Quando eu era criança olhava curioso pela janela, o mundo era selvagem e desconhecido, todas as pessoas tinham um enorme potencial na minha mente, tanto para serem meus grandes amigos, quanto o meu maior terror, as ruas não soavam tão familiares, e cada esquina guardava um segredo, eu olhava para os bueiros e imaginava que se eu entrasse ali e fosse fundo o bastante eu talvez encontraria uma outra dimensão, um mundo desconhecido, nunca entrei, talvez devesse.

    Balancei a cabeça, como se tentasse espantar as lembranças e fui em direção a mesa, abracei algumas pessoas e só sorri para outras, entre goles de uma cerveja que não escolhi, conversava sobre assuntos que não escolhi, algumas interações não tem nada de profundo, as palavras saem automaticamente e não há uma linha de raciocínio real necessária, as vezes eu tentava dizer algo e era interrompido, ignorava e seguia em frente, outras era cortado em meio a uma história por alguém com mais interesse em se vangloriar da sua adolescência badalada do que em ouvir.

    Como sempre me acontece fui perdendo o interesse aos poucos, paguei minha parte da conta, comprei um salgado de presunto e sai pela rua alternando entre passos e mordidas. Sentei em uma calçada qualquer em um quarteirão mais silencioso, limpei os dedos engordurados no meu velho jeans, peguei meu celular e não havia nenhuma mensagem. Pensei na memória de infância que tive mais cedo, e em toda a minha semana, as pessoas que esbarravam em mim na rua e não diziam uma palavra, uma mosca que me perseguiu por quase dois dias, as conversas ignoradas, as mensagens não respondidas, e em todas as coisas que não escolhi, me sentia um morto vivo, uma velha lembrança que vai ficando sem cor até que desaparece, com um tapa no meu próprio rosto voltei pra realidade, se podia sentir dor eu ainda estava aqui.

    Naquele dia fui pra casa e não pensei mais no assunto, mas volta e meia aquela sensação ainda me atormenta, de que estou morto e não me dei conta, de que talvez eu tenha entrado naquele bueiro e me afogado, no entanto o pior vem quando percebo que ainda estou aqui, e ainda assim parece não fazer a menor diferença.