segunda-feira, 16 de abril de 2018

Só uma marca de batom


          Acordei num pulo aquele dia, assustado com um sonho, depois de tantas noites de insônia seria ótimo conseguir ao menos dormir um pouco, seria, não fossem as noites tão perturbadoras, e os sonhos tão intensos e frequentes, deitar exausto, acordar pior, era minha rotina ultimamente, a gente nunca presta muita atenção ao sono, até ficar sem ele, imagine viver duas vidas, sem nenhum descanso, apenas com alguns instantes de sonolência e breu separando-as como um fino véu, lá pela segunda semana você só quer estourar os miolos.
          Me arrastei da cama na melhor maneira possível e resolvi ocupar a cabeça com as minhas tarefas diárias, ouvia um podcast com o volume do fone no máximo, era uma maneira fácil e rápida de ofuscar meus pensamentos que insistiam em berrar, além de aprender alguma coisa nova nos programas. A melancolia me consumia, volta e meia eu me lembrava daquele sonho, o que me fez ficar alerta e paranoico, como um policial de cidade pequena de olhos vidrados vendo um adolescente com camiseta de time e um boné de crochê.
          No caminho para o trabalho o pneu da minha bicicleta furou, desisti daquele dia nesse momento, deixei a bicicleta ali mesmo, corri o mais rápido que pude para longe do barulho do centro da cidade, cheguei a um lote abandonado, no passado havia algo construído ali, agora não passava de um receptáculo de entulhos, coloquei um cigarro na boca, quando fui acender vi que não tinha mais fósforos, berrei algo indecifrável com toda a força da minha angustia enquanto me deixava cair no meio dos escombros, quando meu quadril acertou o chão, e eu levei as mãos ao rosto, sinto um calor, tiro as mãos da face vagarosamente e ali estava ela, com um meio sorriso e um isqueiro acesso, esticando o braço, alcançando meu Marlboro.
          Conversamos por algum tempo, não sei seu nome, não lembro sua feição exata, nunca havia visto ela antes, não faço ideia de como ela chegou ali, mas ainda assim eu contei tudo que estava preso aqui dentro, rimos da má sorte crescente, disso eu me lembro bem, seu lindo sorriso que de tão brilhante ofuscava todo o rosto que estava dentro daquele contorno de cachos, ela me abraçou, tinha que partir, para onde eu não sei, então no desvencilhar do abraço nossos lábios se encontraram, e aquele beijo aconteceu, não sei explicar ao certo como me senti, mas sei que desejei mais que nunca que não acabasse. Infelizmente quando abri os olhos a frieza da realidade me envolveu, ela se foi tão rápido quanto chegou, achei que estava louco, que havia sonhado tanto tempo que não sabia mais separar delírios da realidade, joguei a última bituca de cigarro no chão, e então eu vi o que me deu forças para continuar, marcada ali estava uma marca de batom.