Acordei num pulo aquele dia,
assustado com um sonho, depois de tantas noites de insônia seria ótimo
conseguir ao menos dormir um pouco, seria, não fossem as noites tão
perturbadoras, e os sonhos tão intensos e frequentes, deitar exausto, acordar
pior, era minha rotina ultimamente, a gente nunca presta muita atenção ao sono,
até ficar sem ele, imagine viver duas vidas, sem nenhum descanso, apenas com
alguns instantes de sonolência e breu separando-as como um fino véu, lá pela
segunda semana você só quer estourar os miolos.
Me arrastei da cama na melhor
maneira possível e resolvi ocupar a cabeça com as minhas tarefas diárias, ouvia
um podcast com o volume do fone no máximo, era uma maneira fácil e rápida de
ofuscar meus pensamentos que insistiam em berrar, além de aprender alguma coisa
nova nos programas. A melancolia me consumia, volta e meia eu me lembrava
daquele sonho, o que me fez ficar alerta e paranoico, como um policial de
cidade pequena de olhos vidrados vendo um adolescente com camiseta de time e um
boné de crochê.
No caminho para o trabalho o pneu
da minha bicicleta furou, desisti daquele dia nesse momento, deixei a bicicleta
ali mesmo, corri o mais rápido que pude para longe do barulho do centro da
cidade, cheguei a um lote abandonado, no passado havia algo construído ali,
agora não passava de um receptáculo de entulhos, coloquei um cigarro na boca,
quando fui acender vi que não tinha mais fósforos, berrei algo indecifrável com
toda a força da minha angustia enquanto me deixava cair no meio dos escombros,
quando meu quadril acertou o chão, e eu levei as mãos ao rosto, sinto um calor,
tiro as mãos da face vagarosamente e ali estava ela, com um meio sorriso e um
isqueiro acesso, esticando o braço, alcançando meu Marlboro.
Conversamos por algum tempo, não
sei seu nome, não lembro sua feição exata, nunca havia visto ela antes, não
faço ideia de como ela chegou ali, mas ainda assim eu contei tudo que estava
preso aqui dentro, rimos da má sorte crescente, disso eu me lembro bem, seu
lindo sorriso que de tão brilhante ofuscava todo o rosto que estava dentro
daquele contorno de cachos, ela me abraçou, tinha que partir, para onde eu não
sei, então no desvencilhar do abraço nossos lábios se encontraram, e aquele
beijo aconteceu, não sei explicar ao certo como me senti, mas sei que desejei
mais que nunca que não acabasse. Infelizmente quando abri os olhos a frieza da
realidade me envolveu, ela se foi tão rápido quanto chegou, achei que estava
louco, que havia sonhado tanto tempo que não sabia mais separar delírios da
realidade, joguei a última bituca de cigarro no chão, e então eu vi o que me
deu forças para continuar, marcada ali estava uma marca de batom.